Lei sancionada pelo Governo descumpre a Convenção Internacional dos direitos da Pessoa com Deficiência e retira direitos do benefício por incapacidade
1. Destruição do Modelo Biopsicossocial de avaliação da deficiência:
A Lei nº 14.724, de 14 de novembro de 2023, altera várias legislações, dentre elas: A Lei 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). A Medida Provisória (MP) nº 1.181/2023 foi encaminhada ao congresso com o objetivo de regulamentar bônus de produtividade aos servidores(as) do INSS e alterações em diversas carreiras do executivo federal, conforme avaliação realizada pela FENASPS¹.
Ao sancionar a lei pela presidência da república, há diversas outras alterações, uma delas, a avaliação biopsicossocial da deficiência para acesso ao Benefício de Prestação Continuada – BPC. É regulamentado o assim chamado ATESTMED, análise documental de perícias médicas para os benefícios por incapacidade e para o Benefício de Prestação Continuada – BPC.
Essa medida se configura um grande retrocesso para as pessoas com deficiência, retomando o modelo biomédico da avaliação, ao ser utilizado um documento médico e apenas a Classificação Internacional de Doenças – CID para análise da deficiência. Essa lei, implementa a avaliação biomédica “piorada” para o BPC.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com deficiência e seu Protocolo Facultativa, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 2006 e ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008 promulgado pelo executivo federal por meio do Decreto nº 6.949 de 25/08/2009, foi um marco na conquista das pessoas com deficiência.
A convenção tem como propósito promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por parte de todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade. Também altera o modelo biomédico e restritivo para o modelo social da deficiência.
Tal abordagem esclarece que o fator limitador é o meio em que a pessoa está inserida e não a deficiência em si, remetendo-nos à Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde/OMS (CIF, 2001), retirando a análise unicamente a partir da Classificação Internacional de Doenças – CID.
A avaliação biopsicossocial da deficiência baseada na CIF/OMS representa internacionalmente um avanço nos olhares, nas práticas profissionais e na construção de saberes voltados ao segmento da pessoa com deficiência, uma vez que permite uma avaliação mais completa do contexto e da situação em que se vive, a ser avaliada em todos os seus aspectos, com foco na funcionalidade dos sujeitos para realizar determinadas atividades pessoais e sociais, considerando os facilitadores e barreiras ambientais e pessoais que podem ou não restringir a participação plena na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Os Decretos nº 6.214/2007 e 7.617/2011, definem como pessoa com deficiência: “aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (BRASIL, 2007/2011).
Assim, a avaliação da deficiência no Brasil, vêm sendo reconhecida em âmbito mundial a partir da implantação da avaliação biopsicossocial do Benefício de Prestação Continuada – BPC, iniciada em 2009 no INSS. Esta avaliação passa a ser realizada por assistentes sociais e médicos peritos, sendo composta por diversos qualificadores para análise de fatores ambientais, atividades e participação; e, funções e estruturas do corpo. Uma conquista significativa, com a luta e participação das pessoas com deficiência, extinguindo o modelo biomédico extremamente ultrapassado.
Com a promulgação da Lei Brasileira de Inclusão – LBI nº 13.146, de 6 de jilho de 2015, também conhecida como “Estatuto da Pessoa com Deficiência”, foi firmado que:
§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará: (Vigência) (Vide Decreto nº 11.063, de 2022)
I – Os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
II – Os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
III – a limitação no desempenho de atividades; e
IV – A restrição de participação.
Contudo, o BPC vem sendo alvo de ataques intensos desde de 2016, com alterações nos critérios de renda e mudanças gerenciais no âmbito do INSS que desconfiguram a avaliação biopsicossocial. Em relação as mudanças gerenciais, a Lei nº 14.176/2021, estabeleceu a tele avaliação e o padrão médio de avaliação social. No caso, da tele avaliação há prejuízos significativos na avaliação dos fatores ambientais e atividades de participação social, considerando que os profissionais não tem conhecimento da realidade e território de outro estado ou região que a pessoa com deficiência vive, além das dificuldades de acesso as tecnologias de informação e possível exposição do(a) usuário(a) pela falta de sigilo profissional.
Destaca-se ainda, que é uma falácia que as pessoas com deficiência não se deslocam para fazer a referida avaliação, o argumento falacioso da gestão do INSS de “facilitar” o acesso. Na realidade o INSS tem preparado salas de avaliação nas agências de previdência social onde não há assistente social. Ou seja, ao invés de reestruturar a autarquia, impõe formas de desqualificação do atendimento e, consequentemente, indeferimentos de benefícios. Além disso, não há atualmente a possibilidade do próprio usuário(a) fazer a escolha da modalidade de atendimento. A tele avaliação está sendo imposta às pessoas com deficiência, considerando que o(a) usuário(a) não tem conhecimento, ao fazer o agendamento da avaliação social, sobre a modalidade em que será atendido, desrespeitando assim a liberdade de escolha e a transparência no serviço público.
Já o padrão médio de avaliação é uma avaliação por logaritmo, impondo uma média da avaliação social, descaracterizando a realidade que vive cada pessoa com deficiência.
As ofensivas contra o modelo biopsicossocial de aprofundam na mesma lógica dos governos anteriores, é fundamental a organização dos movimentos sociais em defesa das pessoas com deficiência e dos conselhos de direitos!
¹Análise da MP nº 1.181/2023 realizada pela FENASPS, disponível aqui. Acesso em 16/11/2023.
2. Retirada de direitos e barreiras para acesso ao benefício por incapacidade e aprofundamento da lógica de jornada sem limites para os(as) servidores(as) no INSS
A referida lei também alterou o fluxo de análise dos benefícios por incapacidade, com a possibilidade de análise do requerimento com dispensa da perícia médica e análise documental. Sobre este ponto, há diversos impactos negativos tanto para os servidores do INSS quanto para os segurados. No Art. 1º, referente aos serviços médicos periciais, a lei determina que o pagamento de bônus para análise documental, será apenas reconhecido para tarefas concluídas em dias não úteis ou em dias úteis após as 18:00h. Tal regra, poderá em algum momento ser aplicada a todos os servidores Instituto, acarretando ainda mais sobrecarga de trabalho, além da exigência do adicional de 30% para recebimento do bônus de produtividade.
Cumpre destacar também que, diferentemente do alegado pelo Presidente do Inss, Alessandro Stefanutto, em audiência realizada em 14/11/23 (veja aqui o relatório), a Portaria Conjunta MPS/INSS N° 38 de 20/07/2023 impõem desvio de função para os servidores do INSS, pois existe a atribuição de responsabilidade de concessão de benefício por incapacidade para os servidores administrativos, com avaliação de atestado médico, sendo esta uma atribuição da Perícia Médica.
Diferentemente do que alega o Presidente, de que este não seria um ato médico, a Lei nº 8213, no Art. 60, define que o INSS poderá dispensar a realização de perícia médica mas não análise documental, configurando, portanto, desvio de função dos servidores da área administrativa e pior que isso, impondo atividades do rol de funções de médico perito para os servidores da Carreira do Seguro Social, bem como a Portaria MPS nº 630 de 08/11/23, que transfere a análise de PPPs para os(as) servidores(as) administrativos.
Como a Fenasps alertou no relatório da reunião do dia 14/11/2023, tais medidas impactam também os segurados que necessitam do benefício por incapacidade, mesmo com a afirmação do Presidente de que não se trata de ato médico. Contudo, os(as) servidores não tem conhecimento técnico para realização de análises, que até momento eram realizadas pela perícia médica, considerando a necessidade de análise das condições ambientais e laborais do trabalho.
Em relação ao ATESTMED, o estabelecimento do nexo técnico epidemiológico nesses benefícios por incapacidade praticamente deixa de existir. O INSS impõe que o(a) trabalhador(a) apresente CAT da empresa, em um contexto que há um índice imenso de subnotificação de acidente e doença relacionada ao trabalho, especialmente pelo empregador.
O Presidente alegou que esse trabalho já é feito na análise do pós-perícia, quando na verdade o servidor analisa as questões referentes à regularidade cadastral do segurado, vínculos, contribuições e a data do último dia trabalhado após a realização de perícia por Médico Perito, que avalia a incapacidade para o trabalho, nexo técnico do acidente de trabalho se for o caso (como citado acima), o período de afastamento do trabalho, a isenção ou não de carência, o encaminhamento ou não para reabilitação profissional, se é o caso de encaminhamento à Aposentadoria por Incapacidade Permanente bem como as datas técnicas como DCB e DII.
Desta forma, a Fenasps alerta a categoria sobre os riscos envolvidos nesta atividade de inclusão de dados de atestados médicos nos sistemas por servidores da carreira do seguro social, podendo o mesmo ser responsabilidade posteriormente pelo exercício de função que é exclusiva de médicos peritos, como se já não bastasse o absurdo de mais um acúmulo de trabalho para uma categoria já sobrecarregada.
E mais, para que houvesse mais adesão à análise do AtestMed, o Presidente do INSS afirmou que incluiria a tarefa no programa de bônus (PERF-INSS) e houve aumento da realização dessas tarefas pelos servidores(as).
A Fenasps orienta a categoria sobre os riscos de realizarem atividades que não são de competência dos servidores administrativos, como neste caso do AtestMed, o que pode no futuro acarretar responsabilização do servidor perante os órgãos de controle e do próprio judiciário. A própria gestão do INSS reconheceu que a “flexibilização” na realização da perícia médica se deu pelo fato de existir um gargalo neste ponto para análise dos requerimentos, ou seja, não há quaisquer critérios técnicos nesta decisão, apenas uma ação temerária, desmedida e improvisada que literalmente empurrou este serviço para os Servidores da Carreira do Seguro Social com grave risco para os trabalhadores no Instituto e os segurados do INSS.
Além disso, há uma reiterada ofensiva no desmonte e extinção do Serviço Social como serviço previdenciário: O Serviço Social no INSS desempenha o importante papel de informar aos usuários(as) os seus direitos previdenciários e assistenciais e os meios de exercê-los, de forma individual e coletiva, estabelecendo com a população a solução dos seus problemas na relação com a Previdência Social. É um dos últimos espaços de atendimento presencial para a população, em especial para idosos(as), pessoas com deficiência e pessoas com dificuldade de acesso digital. Contudo, o processo de desmonte deste importante serviço previdenciário, vêm se aprofundando ainda mais na gestão atual do INSS.
A FENASPS, desde a instalação da equipe de transição do atual governo, vem solicitando dentre outras medidas implementadas pelo governo, revogações dessas medidas que atacam os direitos das pessoas com deficiência e direitos previdenciários e assistenciais.
O governo Lula foi o responsável por efetivar diversas conquistas para as pessoas com deficiência. Foi no governo Lula que foi implementado o modelo biopsicossocial da deficiência.
Assim, manifestamos o nosso repúdio a desconstrução do modelo biopsicossocial da deficiência impostas, sem nenhum debate com os movimentos das pessoas com deficiência e entidades sindicais. É incompreensível que o atual governo que se propõe ser democrático, impor medidas tão danosas às pessoas com deficiência sem nenhum debate.
A FENASPS, em reunião no Palácio do Planalto com o diretor Paulo Cangussú André (fotos acima), do Gabinete Pessoal do Presidente da República (saiba mais aqui), entregou ofício solicitando reunião com a presidência da república, bem como, o dossiê: “Uma bomba-relógio chamada INSS: A urgente e necessária reestruturação da maior autarquia pública da América Latina – Diagnóstico e propostas da FENASPS à Equipe de Transição do Governo Lula” (disponível aqui), solicitando a revogação das medidas que descontroem o modelo biopsicossocial da deficiência, reestruturação do Serviço Social e do INSS.
Ainda, será encaminhado ofícios de denúncia ao Ministério de Direitos Humanos, Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – CONADE e a Associação Nacional dos(as) Membros(as) do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas Idosas e Pessoas com Deficiência – AMPID.
É fundamental que a categoria busque seus sindicatos e denuncie todos os retrocessos e retiradas de direitos no INSS.
Só a luta coletiva poderá barrar esses retrocessos!