Constituição cidadã completa 33 anos sob ataques do governo com a PEC 32
Principal símbolo do processo de redemocratização do Brasil, a Constituição Federal (CF) de 1988 completa 33 anos nesta terça-feira, 5 de outubro. Conhecida como “Constituição Cidadã” pelos avanços em direção à cidadania e à dignidade da pessoa humana, a sétima Carta da história do país deu voz à sociedade civil organizada e consolidou o Estado Democrático de Direito.
A Constituição é o maior conjunto de normas que rege o país. Ela estabelece, por exemplo, direitos e deveres dos cidadãos e cidadãs, disciplina o ordenamento jurídico e organiza o papel do poder público, definindo atribuições dos municípios, estados, União e dos três Poderes da República. Desde a sua promulgação, o Brasil vive o mais longo período de estabilidade institucional de sua história.
Os primeiros artigos consagram os princípios da democracia representativa e definem o Legislativo, o Executivo e o Judiciário como os Poderes da União, referindo-se ao Estado brasileiro como um Estado Democrático de Direito. Essa foi a primeira vez que uma Constituição citou um tipo determinado de Estado.
A Constituição de 1988 instituiu o acesso universal à educação, à saúde e à cultura. Colocou a Educação como dever do Estado, criou o Sistema Único de Saúde (SUS), introduziu a defesa do consumidor como um direito fundamental, garantiu o pleno acesso à Cultura e conferiu ao Estado a obrigação de proteger todos os tipos de manifestações tipicamente nacionais, como a indígena, a popular e a afro-brasileira.
A nova Carta reconheceu a importância da biodiversidade ao dedicar um capítulo ao Meio Ambiente. Passou a exigir avaliação de impacto ambiental para obras e abriu caminho para legislações posteriores, como a Lei das Águas e a Lei dos Crimes Ambientais. Também ampliou direitos sociais e trabalhistas, como a seguridade social de caráter universal, a liberdade sindical e o direito de greve.
PEC 32 e os ataques à CF de 1988
Dentre os ataques em curso, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 32/2020 da “deforma” administrativa talvez seja a mais perversa e virulenta do período recente. Esta proposta está carregada de visão negativa e estereotipada acerca do Estado brasileiro, dos serviços, políticas e servidores públicos, constituindo-se, acima de tudo, em proposta de cunho autoritário, fiscalista e privatista da administração pública brasileira.
Nesse contexto de terra arrasada pela pandemia, pela regressão produtiva e político-institucional, e pelo retorno do país ao mapa da fome, não é difícil perceber a inversão de prioridades na (des)ordem política nacional. A crueldade do governo Bolsonaro fez do Brasil o pior país do mundo na gestão da pandemia e da crise econômica e social em curso.
Com a proposta de deforma administrativa Bolsonaro/Guedes, o governo age para nivelar por baixo o padrão histórico brasileiro de condições e relações de trabalho, lançando também os trabalhadores do setor público ao patamar e práticas milenares da sociedade escravocrata nacional.
Aqui, não se dão conta de que o tal aumento de produtividade e a melhoria de desempenho institucional agregado do setor público será resultado, na verdade, de um trabalho longo e custoso, mas necessário, de profissionalização da burocracia pública ao longo do tempo. Não há, portanto, choque de gestão ou reforma liberal – menos ainda esta, de natureza autoritária, fiscalista e privatista – que superem ou substituam o acima indicado.
Diante de tais circunstâncias, seria ingenuidade (além de completa ignorância histórica) imaginar que este tipo de transformação ocorra sem conflitos, sem medição de forças ou sem reação. Como qualquer processo político, não é neutro quanto ao balanço de poder entre os diferentes grupos da sociedade.
O acirramento de confrontos políticos verificado nos últimos cinco anos ilustra isso, mas também expõe a impossibilidade de acomodar os conflitos dentro dos espaços e práticas tradicionais, das quais são exemplos o “presidencialismo de coalizão” (com seus desdobramentos visíveis em termos de corrupção e manutenção de privilégios), e um determinado padrão de apropriação do fundo público que precariamente equilibrava a prioridade aos credores do Estado e a relativa imunidade das rendas patrimoniais e do capital à tributação com mecanismos limitados de redistribuição de renda e garantia de proteção social.
Da mesma forma, o aparato jurídico-legal e policial se vê tensionado entre aberturas lentas e contestadas ao seu papel de garantidor de direitos e provedor de segurança pública, ao mesmo tempo em que ganha impulso a reação contrária, que cobra o fortalecimento da sua face repressiva e punitiva, criminaliza os movimentos de contestação social e busca converter esses aparatos em instâncias de veto e de desconstrução de políticas e iniciativas voltadas a realizar o projeto constitucional.
Essa tendência vem acumulando força a tal ponto de condicionar o processo político (não apenas eleitoral) que o próprio Judiciário, o Ministério Público e as polícias se tornaram arenas políticas, abrigando atores que apenas muito indiretamente estão sujeitos aos controles eleitorais democráticos, mas que inversamente atuam decisivamente nas demais arenas públicas.
Diante disso tudo, estamos certos de que, neste grave momento da vida nacional, o sindicalismo organizado no setor público vem cumprindo papel fundamental nesse debate torpe, ao desconstruir as falácias que os detratores do funcionalismo repetem à exaustão, mas, sobretudo, por tratar do tema com a responsabilidade que ele exige, com espírito público, sensibilidade social e rigor científico.
Em síntese, trata-se de recuperar – ideal e programaticamente – a mais importante das inovações possíveis à construção de uma administração pública profissional e condizente com os grandes desafios acima enunciados. Para tanto, cabe recuperar a verdadeira e inovadora reforma administrativa contida na CF-1988, mas apenas parcial e precariamente implementada.
Além do estabelecimento do concurso público como forma principal de ingresso em cargos públicos e do RJU (Regime Jurídico Único) como normativo principal de regulação dos mesmos, há cinco fundamentos que precisam ser levados em consideração para uma boa estrutura de governança e por incentivos corretos à produtividade e ao desempenho institucional satisfatório ao longo do tempo. São eles:
- Estabilidade na ocupação, idealmente conquistada por critérios meritocráticos em ambiente geral de homogeneidade econômica, republicanismo político e democracia social, visando a proteção contra arbitrariedades – inclusive político-partidárias – cometidas pelo Estado-empregador;
- Remuneração adequada, isonômica e previsível ao longo do ciclo laboral;
- Escolaridade e qualificação elevadas desde a entrada e capacitação permanente no âmbito das funções precípuas dos respectivos cargos e organizações;
- Cooperação – ao invés da competição – interpessoal e intra/inter organizações como critério de atuação e método primordial de trabalho no setor público; e
- Liberdade de organização e autonomia de atuação sindical.
Uma vez que se entenda serem os serviços públicos altamente intensivos em recursos humanos, percebe-se a relevância de estruturas administrativas e inovações centradas em gestão de pessoas e gestão de desempenho. Em síntese, as evidências disponíveis demonstram a relevância das organizações e carreiras públicas para qualquer projeto de desenvolvimento que ainda se almeje ao Brasil neste século XXI.
Desmontar tais capacidades em nome de um fundamentalismo liberal vai, ao mesmo tempo, destruir o potencial transformador que a sociedade brasileira construiu por meio do Estado ao longo desses 33 anos de vigência constitucional democrática, como comprometer as chances de emancipação e desenvolvimento social de sua população – sobretudo a mais vulnerável – justamente num contexto econômico (nacional e internacional) marcado por enorme complexificação e exclusão, frente às quais soluções aparentemente rápidas e fáceis se mostram, de saída, fadadas ao fracasso.
Fonte: site do TSE e artigo de José Celso Cardoso Jr publicado no Estadão.